>ah, o tempo…

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Há 14 anos, na montanhosa cidade de Belo Horizonte, conheci uma garota que viria a ser uma grande amiga, talvez a única que me conheça tanto a ponto de rir e chorar comigo e, ainda assim, cobrir-me de sermões. Martha usa o mesmo corte de cabelo até hoje, caindo-lhe pelos ombros numa cascata de mogno natural. Também manteve os mesmos princípios e, ainda que tenha viajado pelo mundo e conhecido o melhor e o pior dele, ela nos revela o mesmo sorriso, a mesma risada irônica, o mesmo sotaque mineiro. Enquanto eu tingia os cabelos de loiro, cobre e negro, subia e descia a Avenida do Contorno como numa montanha-russa e incorria em erros banais, Martha representava constância e segurança. Quando pareadas, sou maior que ela (Martha é do tipo mignon, um filé, como diria o seu noivo italiano). Mas porque tamanho não conta, ainda que com pernas mais curtas, é Martha a adulta entre nós, a capricorniana racional, que utiliza o bom senso para tomar suas decisões e pensa mil e quinhentas vezes antes de pular.
Há cinco anos escrevi-lhe uma carta e postei-a no Orkut, a extinta rede social para a qual, à propósito, entrei por convite de Martha. O depoimento, como o chamávamos então, jazia na página azul-calcinha do perfil-fantasma da minha amiga, que trabalhava três turnos por dia, viajava para a Rússia, estudava aos sábados e mal acessava o seu email, o que dirá um site com nome de Danoninho. Há muito já havia perdido as esperanças de que ela me respondesse. Escritor órfão e/ou falido tem dessas coisas: dedica testamentos às pessoas que preza, rabisca bilhetes e cartas de amor, compõe emails elaborados, mas nem sempre, ou quase nunca, é correspondido. Hoje, cinco anos depois, Martha respondeu. E sua resposta foi ainda mais especial porque veio no envelope de uma mulher madura, que repensou a vida, sopesou valores, pingou os “is” e definiu a própria identidade. Ninguém mais poderia fazê-lo por ela, porque Martha é do tipo de gente que só segue caminhos por ela mesma traçados e remenda sonetos apenas por ela escritos. Abaixo, minha carta e, em seguida, a resposta de Martha. É bom saber que, na vida, algumas coisas mudam. Mas é ótimo ter certeza de que outras simplesmente permanecem as mesmas. 
“Lembro-me da primeira vez que vi Martha, há dez anos. Eu era só mais uma garota que acabara de se mudar para o pensionato da mãe dela que, sempre muito cortês, “convocou” a filhota para conhecer a nova moradora. Martha desceu as escadas com o cabelo molhado e solto, moletom azul e uma cara de sono inesquecível, de pouquíssimos amigos. Eu, que naquela época tinha certa vocação para “lobo solitário”, logo me encantei por ela e sua reserva e discrição mineiras. Sou uma criatura bastante cética, mas, com relação à Martha, devo admitir: alguma conjunção cósmica ou uma carta escondida na manga dos deuses devem ter vindo à tona para que eu quisesse tanto aquela adolescente arrogante e calada na minha vida. Ao invés de fazer amizade com as outras moças que dividiam a casa comigo, eu passava a maior parte do tempo no andar de cima, ou melhor, no quarto da Martha, e com os seus pais e irmãos. No entanto, aceitava que eu entrasse em sua vida aos pontapés não por acaso.

Com sua sensibilidade trancada a sete chaves num coração que, já sabia ela, precisava ser protegido, logo percebeu que uma moça solitária como eu precisava de alguém forte e decidida como ela; além disso, acho que aos poucos fui mesmo “conquistando” Martha, apagando de sua alma cicatrizes deixadas por pessoas que ela julgava serem amigas; mostrando a ela o quanto confiava em seu caráter; contando-lhe todo e qualquer percalço da minha vida; ouvindo seus problemas e fazendo-a acreditar que, não, ela não era diferente, os outros é que eram muito iguais; penteando seus cabelos compridos antes que ela caísse no sono; indo com ela a bares e boates que eu odiava, só para fazê-la ter certeza de que aquilo simbolizava uma concessão à amiga que eu já prezava tanto; passando natais, anos-novos e carnavais sobrenaturais em lugares ainda mais alienígenas com ela; defendendo-a até as últimas conseqüências e, o mais importante, sempre abraçando-a apertado, mesmo quando ela se esquivava de mim.

Falando assim, até parece que era eu quem cedia sempre. Esta não poderia ser uma mentira mais injusta. Martha pulava comigo em cada abismo que, ela insistia, eu me “permita cair”; ouvia atenta às minhas elucubrações e, ao final, ponderava tudo, sempre me mostrando saídas que, sem ela, jamais encontraria; consertava minhas mancadas e me salvava de enrascadas em que nem meus pais topariam se meter; encapava meus cem mil livros com papel contact, ainda tendo que me ouvir perguntar, obsessivamente: “tem certeza que não tá dando bolha?”. Martha esteve presente nas maiores encruzilhadas e decisões da minha vida: mudança de curso na Faculdade, inícios e términos de relacionamentos, entradas e saídas do mercado de trabalho, brigas com os pais, depressões, euforias loucas, batidas de carro, roubos de carro, gargalhadas alucinantes e lágrimas. Quantas lágrimas… Mesmo assim, com o passar dos anos, eu ainda nutria uma sensação estranha de que Martha era como a Lua para mim: sempre velando uma face, escondendo-se.

E, novamente, estava enganada. Porque eu sempre expressei todo pensamento e sentimento aos borbotões, achava que a sua reserva em relação ao mundo e a estranhos que pudessem feri-la se estendia a mim. O que levei dez anos para entender é que a Martha sempre se preservou, mas nunca se afastando; a diferença é que ela é mais discreta para mostrar os sentimentos, não faz tanto barulho quanto eu. E hoje as poucas reservas que ela ainda poderia ter caíram por terra. Com tanta distância a nos separar e reviravoltas da vida, Martha e eu ainda somos como irmãs. Consegui fazê-la acreditar que nem todo “forasteiro” chega para conquistar e, em seguida, desaparece ou puxa o seu tapete. No fundo, somos amigas de infância”.
por Roberta Rohen, no falecido Orkut, há cinco anos.

β

“Umazinha que apareceu lá em casa, às 7:00 da matina, com a mãe a tiracolo. A anterior tinha ido embora aos prantos e às pressas por me roubar o namoradinho sem graça e de inteligência duvidosa. Esta tinha recomendação divina, fora indicação das freiras do Sacré-Coeur de Marie. Seria boa moça, com certeza. Eu com meu moletom azul, que depois foi dela e talvez ainda o tenha até hoje. Será? A simpatia com que as recebi foi a mesma que se recebe um ursinho de pelúcia no 12 de junho. Mas o sorriso amarelo apareceu na tentativa forçada de fazê-las acreditar que tirar alguém da cama na madrugada de um sábado era algo aceitável e quase prazeroso. Acho que foi daí que ela tirou a inspiração ‘sorrisos amarelos’.

A visita se estendeu por um tour pelos cômodos da casa onde a candidata a hóspede pudesse familiarizar-se com os ambientes e conhecer as outras estudantes que dividiriam com ela os próximos meses. Eu, que naquela época já era convicta de que a solidão é caminho certeiro para a auto-realização e o sucesso deixei claro que ali não haveria brecha de entrada. Talvez por isso mesmo tenha causado tanta vontade por parte daquela de querer fazer-se notar.

A indiferença que lhe dedicara não tinha intenção de magoar. Apenas era recado de que a mim bastava o mesmo e tudo estaria resolvido com educados “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”. As estripulias dela também não me impressionavam como aos outros, apenas parecia a mim imaturidade pura, natural de uma adolescente de 18 anos, numa mente que pretendia fazer-se de adulta. A inteligência, porém, chamava a atenção. E tinha mais cultura que toda a fila de carinhas redondas e espinhentas juntas, elevada à quarta potência.

Acumulou algumas tentativas frustradas de aproximação, que lhe renderam, no máximo, pães de queijo quentinhos assados por minha mãe para o lanche da família. Por vezes cogitei que a presença constante se fazia mesmo pelos lanches. Fato que caiu por terra em pouco tempo, já que ela trazia das visitas aos pais, caixas de alimentos os mais variados, com produtos que não cabiam nos supermercados de qualquer família. Depois comecei a achar que era pela companhia, talvez saudade de casa ou até necessidade de participar da desordem e discursos confusos e pouco fundamentados – e por isso mesmo divertidos – próprios dos ambientes familiares. Isso eu poderia fazer. Emprestar-lhe a minha família, quando ela assim o desejasse, para passar o tempo, entre conversas jogadas fora, escárnio e pães de queijo.

A troca de indiferença por amizade aconteceu de graça, de uma forma pouco convencional, como era de se esperar. Vê-la sozinha, imersa em lágrimas e ensurdecida pela altura da música que saía dos alto-falantes do carrão quatro portas, zero quilômetro, que o pai lhe presenteara pela aprovação no vestibular de Engenharia Mecatrônica, me partiu o coração e me fez perceber que diante de mim havia apenas uma adolescente com medo de ser gente grande. A causa de tanto sofrimento era o espírito de escritora precoce e sentimental que já aflorara mesmo antes da vinda para Minas e que proporciona a estes enxergar dor onde ela não existe de fato. Ali tive a minha primeira aula de música. Depois vieram as aulas de literatura, cinema, psicologia… E uma inversão de papéis entre professor e aluno, já que eu era a mais velha. O máximo que eu conseguia ensinar a ela era como organizar calcinhas e meias nas gavetas, atividade, aliás, que faço com perfeição até hoje.

Foi a minha primeira referência feminina. Apresentou-me a maquiagem sob um ponto de vista que eu desconhecia; o do prazer. Encheu a minha necessaire (que não por acaso também foi presente dela) de batons, blushes, rímels, bases sólidas, líquidas, pós compactos, sombras e tantos outros produtos que eu sequer sabia que existiam, no intuito de me forçar em algumas viagens nesse universo distante e estranho.

Depois vieram as aventuras e as furadas em que nos dispusemos a cair, as histórias, os tropeços, as escolhas e a falta delas que acabaram nos direcionando a caminhos opostos, mas não definitivos. E enquanto eles vão seguindo seus rumos, nós os vamos seguindo, na expectativa que logo ali (como dizem os mineiros), a estrada faça uma curva.”
por Martha Bueno, em Bolsa de Viagem, cinco anos depois.

2 Comentários on “>ah, o tempo…”

  1. >Uma linda história de amizade verdadeira como essa,difícil de se ver hoje em dia,só poderia mesmo ter você como uma das protagonistas.Muito emocionante!!Um abraço minha amiga.

  2. βετα disse:

    >Obrigada, Alberto. A Martha está aí em BH; ela é uma personagem e tanto. Precisa vê-la contando um caso! Abração, amigo!


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